Em todo o país, o preço da energia pesa mais no bolso de quem já vive no limite. No total, mais de 23 milhões de brasileiros estão com as contas atrasadas, e paulistas enfrentam o recente aumento de quase 14% no preço da energia
Julho, 2025 – Se vai tomar banho, tem que ser ligeiro. Se usar o micro-ondas, desliga da tomada depois. Se precisar passar roupa, não pode ser a roupa da semana toda. O relato certamente não é estranho pra quem lê. Essa é a realidade de Maiane Santos, na Vila Perus, zona noroeste da cidade de São Paulo, e também de milhares de brasileiros em todo o país que vivem em cada detalhe da rotina diária o medo da conta de luz no fim do mês.
O encarecimento da energia elétrica não altera só a rotina no dia a dia, mas toda a organização financeira familiar: “Já é um dinheiro que você deixa de comprar alguma coisa. Um leite, uma carne, uma salada, uma mistura para o arroz. Ou até um lápis, uma borracha, um caderno pro filho levar pra escola”, relata Maiane.
A pesquisa de opinião pública Justiça Energética, do Instituto Pólis, aponta que gastos com alimentação e energia são os que mais impactam no orçamento doméstico para metade das pessoas entrevistadas. O estudo alerta que 6 a cada 10 famílias da classe D/E – mais de 23 milhões de brasileiros – estão com as contas de luz atrasadas. Entre aqueles que conseguem manter a conta em dia, muitos relatam que uma alternativa tem sido a redução ou não aquisição de alimentos básicos e bens de consumo.
Em um país que fica sempre entre os primeiros lugares no ranking das tarifas de energia mais caras do mundo, os brasileiros sentem o impacto ano após ano e o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) acompanha esta realidade junto com o povo, lutando pela redução da conta de luz, por tarifa social e por uma transição energética justa e popular.

Robson Formica, membro da coordenação nacional do MAB, explica: “O impacto é mais uma forma de superexploração do trabalho, tanto do ponto de vista de quem trabalha no setor elétrico, mas também uma superexploração do trabalho de quem consome. Porque você precisa despender muito mais tempo de trabalho relativo ao seu salário, para poder acessar eletricidade.”
É necessário compreender o amplo e complexo cenário que afeta profundamente a vida das famílias brasileiras. Robson ressalta que, antes de tudo, está aquilo que já impacta nossas vidas nos mais diversos aspectos: o neoliberalismo e a supremacia do capital. A intenção primeira é a geração do lucro, e não garantia à população do acesso a um serviço de qualidade.
“A energia já não é mais precificada pelo seu custo real de produção, mas sim pelo seu preço no mercado internacional. A questão é que no Brasil, a maior parte da eletricidade é produzida a partir de fonte hidráulica, que tem um custo de produção muito menor do que a energia em escala global, já que as grandes matrizes de produção de energia em nível mundial são os combustíveis fósseis: carvão, gás natural, petróleo. E eles têm um custo de produção muito maior do que a eletricidade produzida aqui”, analisa Formica.
Privatizar não é o caminho!
A pesquisa do Instituto Pólis constata que, para 84% dos brasileiros, a energia elétrica deveria ser um direito fundamental garantido pelo Estado. A ampla maioria da população defende, inclusive, que a falta de capacidade de pagamento da conta de luz não deve sujeitar as famílias inadimplentes a cortes de fornecimento, visto que o acesso à energia elétrica deveria ser assegurado como direito inviolável.
Infelizmente, essa não é a realidade que vivemos no chão de nossas comunidades. Cortes cada vez mais frequentes, aumentos recorrentes de tarifas, redes sucateadas sem manutenção constante e nenhum canal efetivo de comunicação. No outro lado, os acionistas – muitas vezes internacionais – colhem os lucros rendidos às custas do sofrimento do povo.
Na boca das empresas, há sempre uma boa desculpa para justificar o aumento ou a interrupção no fornecimento. Mas, a verdade é que, a partir do processo de privatização pelo que passou o Brasil nos anos 1990, a energia se tornou uma mercadoria internacionalizada, precificada a partir dos parâmetros globais. Entretanto, o preço abusivo não se justifica de forma alguma no território brasileiro, já que não há custo na matéria prima de nossa produção: a água. É verdade que existem custos de distribuição e um investimento inicial alto, necessário para a construção das usinas hidrelétricas, mas que ainda assim não justificam as cobranças abusivas.

Robson lembra que, em 2013, a então presidenta Dilma Rousseff conseguiu baixar o preço da energia em torno de 20%, ao exigir que as empresas aderissem a um pacote de renovação das concessões que previa redução no preço final, considerando especialmente que a construção da usina já estava paga pela concessão anterior. E que, portanto, com baixíssimo custo de matéria prima, já não fazia sentido seguir cobrando o mesmo preço de energia. Também hoje ele vê a urgência de que “o Estado tome direção e decisão política para mudar a precificação da energia”.
Outro fator que contribui para o aumento tem relação com o Sistema Interligado Nacional (SIN). No Brasil, as empresas de energia se interligam através do SIN para garantir equilíbrio na distribuição. “É um sistema altamente eficiente. Historicamente, quando há períodos de maior estiagem no Sul e Sudeste, os ciclos hidrológicos no Nordeste e Norte estão em alta e compensam. Depois o contrário, quando o Norte e o Nordeste estão em ciclo hidrológico menos intenso, Sul e Sudeste compensam”, esclarece Robson. Ele ainda explica que, com o processo de privatização, essa organização se torna menos eficaz. Porque a ação do setor deixa de ser estratégica em favor do abastecimento para a população, e passa a ser estratégica do ponto de vista da acumulação de riqueza para as empresas. “Às vezes, ao próprio setor interessa a escassez, porque ela justifica o aumento do preço”, realça Robson.
A partir das privatizações, temos “uma concepção de energia mercadológica, que é a essência do neoliberalismo. Então, não temos mais a energia como um serviço público, como um insumo para o processo de produção e para a reprodução da vida material, mas como uma mercadoria”, salienta Robson.
Um dos maiores retrocessos neste contexto ocorreu durante o governo Bolsonaro: a privatização da Eletrobrás. A empresa estatal controlava 48 usinas hidrelétricas e aproximadamente metade dos reservatórios do país. Transferir esse patrimônio estratégico para o setor privado representa uma grave ameaça, tanto para a segurança energética nacional, quanto para o acesso à água, já que esses reservatórios possuem múltiplas funções – como abastecimento público, navegação, atividades turísticas e agricultura. Outro agravante foi o fim da tarifa subsidiada, que mantinha o preço da energia abaixo da média nacional, beneficiando a população.
São Paulo enfrenta quase 14% de aumento

Desde o início de julho, 24 municípios da região metropolitana, incluindo a capital paulista, têm que lidar com o aumento médio de 13,94% nas tarifas de energia. Aprovado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o aumento acontece em um momento em que já existe precarização da vida das pessoas mais pobres por conta da inflação, que recai sobre vários outros itens de consumo.
Moradora do bairro Baleia Verde, em São Sebastião, Alzenira Bezerra, conta: “Eu não estou trabalhando, sou mãe solteira, só tenho o benefício do Bolsa Família para pagar mais de R$200 de luz e mais de R$200 de condomínio. Aí me resta o que para comer com meu filho?”.
O reajuste aplicado pela Enel, e os frequentes apagões em São Paulo, ajudam a explicitar os maiores problemas da privatização. O controle da energia pelas empresas privadas leva ao sucateamento do próprio sistema, onde o processo de planejamento e o investimento em manutenção e prevenção das linhas é abandonado. “Por que ficar gastando valores importantes e expressivos em manutenção preventiva da linha, se eu posso antecipar isso para distribuir para os meus acionistas, transformando em dividendos?! Essa é a lógica do capital financeiro, que é o lucro imediato num curto espaço de tempo”, pontua Robson Formica.
Aneel, a serviço de quem?
Ao olhar para o cenário da energia no Brasil, é preciso falar sobre a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). O órgão atua em todas as etapas da cadeia: desde a geração, transmissão, distribuição, até a comercialização da energia. Na teoria, é responsável por promover leilões para contratação de empresas que atuam no setor, definir tarifas e reajustes, além de garantir a qualidade do serviço prestado.
Entretanto, o que vemos na Aneel é uma estrutura viciada, disponível para servir os interesses do capital e não para garantir eficácia, justiça e qualidade na distribuição. “Hoje, sua capacidade regulatória está muito vinculada a uma estrutura subordinada ao modelo energético e ao setor elétrico, a partir da lógica do mercado”, analisa Robson.
Para ele, o foco da regulação da Aneel tem sido muito mais no sentido de garantir a energia elétrica e a regulação da energia como mercadoria, e não como algo estratégico para o desenvolvimento do país e como um elemento fundamental da vida do povo. A verdade, segundo Robson, “é que ela está muito mais interessada na viabilidade econômica e financeira das empresas do que propriamente em atender e satisfazer as necessidades do povo brasileiro ou de um projeto nacional. Por isso, ela acaba tomando decisões e atuando como um braço de Estado do próprio setor e das próprias empresas, como um agente regulador do mercado de eletricidade, e não atuando a partir de uma estratégia de desenvolvimento ou propriamente de atender o povo brasileiro com energia acessível, barata e de qualidade”.
A partir desse contexto, é muito comum que a Agência Nacional aprove os processos de privatização e, até mais do que isso, incentive-os. “No fim, o papel dela acaba sendo contra o povo, contra uma energia de melhor qualidade e mais barata, contra um modelo eficiente. Ela privilegia esses aspectos regulatórios para garantir lucro, energia como mercadoria e não energia como um elemento fundamental da vida do povo brasileiro”, finaliza Robson.
Afinal, há saída?
Não sem luta, não sem enfrentamento, não sem pressão. Mas é possível sim pensar caminhos. Eles implicam em uma grande disposição do governo e da luta social em construir um modelo diferente do que está posto.
“É preciso um modelo que não tenha como centro a energia como mercadoria, que não tenha o mercado como mediador das relações de compra e venda e nem como mediador para estabelecer os preços da energia. Essa lógica, que vem desde o início da privatização, já demonstrou que não vai levar à diminuição dos preços, não vai tornar o sistema mais eficiente e não vai tornar a energia mais acessível”, alerta Robson.
Para o MAB, o caminho passa pela reestatização do setor elétrico, o que já aconteceu na França e em alguns países da América Latina. Isso porque nos únicos momentos em que a energia efetivamente foi precificada pelo seu custo, e não como mercadoria, foi quando o Estado atuou.
Em plena crise climática, é preciso recuperar a soberania sobre o setor energético, adotando medidas para universalizar o acesso, e na certeza de que, sem participação popular, a transição energética só reproduz injustiças e fortalece o capital.
